pequenitudes - crônicas das pequenas atitudes humanas

quarta-feira, 6 de julho de 2016

o lance

O lance que ele parecia querer me dizer era sério, aqui, nesse parque vazio e escuro. Em lágrimas, tenta me dizer algo, balbucia algumas palavras sem sentido, será que andou bebendo/ se drogando, faz tanto tempo que a gente-meu deus, como ele está esquisito pondo a mão no meu bolso, puxando a receita do meu psiquiatra, jogando no chão, falando como a gente era, de como éramos amigos, de passados risonhos e malucos, ele me empurra, alguém passa e diz “posso ajudá-lo?”, mas “tudo bem, moça”, e ele a ignora totalmente me esmurrando e dando ordens no meio de lágrimas, de tudo que já fui e quis ser e de todas as mentiras que disse para não matá-lo. Ele me joga todos os remédios na cara, e é quando caio ao chão em prantos, enquanto ele desaparece na minha frente para nunca mais voltar.

terça-feira, 7 de junho de 2016

Sonhos

ia para a Noruega.
Não, não, ia ao Japão.
Saíra com o pai para comprar os bilhetes e em seguida voltara para fazer as malas.
No percurso até a casa avista homens que cortam, assam e devoram partes de um cavalo ainda vivo, ferido em batalha.
Ela chamara a polícia, contara a todos do ocorrido, mas ninguém parecia dar atenção ao fato, como se fosse algo natural e corriqueiro.
Já em casa, dá-se conta que precisa se proteger dos homens do churrasco. Eles forçavam e tentavam abrir a porta da entrada.
Não havia escapatória, ela o sabia. Assim, reúne todas as crianças,- que eram muitas na casa-, e as leva a um quarto com portas grandes e fechaduras reforçadas. As crianças precisavam de música. Para relaxar. Para que não se dessem conta do iminente perigo. Porque crianças não podem deixar a vida com medo. Inexplicavelmente, os homens se vão sem que consigam o intento. As crianças sorriem.
Ela as deixa e, enfim, começa a preparar as malas. Era o dia da viagem.
São tantos casacos, lãs, sobretudos, botas, sapatos, cachecóis, malhas, meias.
São tantos sapatos. Para quê tantos? Para quê tanta roupa e sapatos nessa vida?
Puxa uma saia de couro marrom. Bonita. Essa!
Não. Essa não. Não é adequada. Limitaria os movimentos do voo.
Ela sabe que, quando voa em sonho, nunca vai dentro da aeronave. Mas por fora, livre, esperneando, acompanhando, quando lhe apetece, o percurso da máquina, tocando-lhes as asas.
Melhor uma calça.
Põe uma calça.

domingo, 29 de maio de 2016

máfia

três bebês se reuniram no corredor da creche. um deles tinha uma mamadeira cheia na boca.
- onde está a muamba?, - perguntou o mais gordinho.
- pera lá, me pague antes, salafrário! - disse o carequinha.
- falem baixo, seus danados! querem que todo mundo nos ouça? - perguntou por fim o chefe do bando, fumando sua mamadeira cubana.
o carequinha puxou de dentro da fralda um brigadeiro amassado. por um segundo, o gordinho imaginou que fosse outra coisa (a cor e a origem confundem).
- tá aqui o pagamento - respondeu o gordinho, dando-lhe duas peças grandes do LEGO genérico da creche, as duas peças que faltavam para terminar de construir seu projeto que na verdade não era nada (era muito bebê para saber o que estava construindo).
o líder da pequena máfia puxou uma das peças da mão do gordinho e disse: - minha comissão!
antes de retrucar, o gordinho se calou. nunca se desafia o chefe.
os três então seguira caminhos diferentes.

ventos

- quanto vento, senhor! - disse a menina, olhos na janela.
- quanto frio, eu diria. - disse o idoso, apertando a coberta contra o corpo. - veja só como estou tremendo, imagino que poderia morrer de frio.
- veja só, toda a sala treme! o resto da cidade no calor, e nós aqui, desfrutando dessa belezura!

ela deve ter vinte anos, talvez menos. ele, setenta, quem sabe até oitenta. o que dizem as aparências?
são dezesseis andares, e nenhum dos dois se atreve a fechar a janela. ela, por estar demasiado excitada com a ventania. ele, por estar tremendo além do controle.

- faça-me um favor, e feche a janela -, disse o homem. - o frio é demais para mim.

mas o vento, forte, uivante, calou sua voz antes de chegar aos ouvidos da moça.

momentos depois, chuva. um trovão timidamente ressoou a quilômetros, poucos segundos depois de um feixe de luz cruzar o céu.
o vento se aquietou, e assim também a moça. entediou-se.
o senhor, calado, já não se movia.
adormecera, feliz.

prazeres

observando meu filho menor, por dias, percebo que existe um certo prazer na destruição. ele não tem pena em rasgar livros, arranhar CDs, derrubar eletrônicos e gritar rompendo o silêncio. a todas essas atividades, segue-se um riso feliz, inocente.
observo agora meu filho mais velho. de posse de alguns lápis de cor, desenhamos. empilhamos blocos de brinquedo, encaixamos Lego, jogamos Minecraft. vejo outro tipo de alegria, seguida da criação, nos olhos do menino.
me observo, neste momento, por alguns segundos. entediado no fim de semana, cansado dos dias de trabalho. parado no sofá, sinto-me mal.
o prazer, imagino, vem da atividade. construtiva ou destrutiva. tanto faz. meus filhos me ensinam mais do que eu jamais os ensinarei na vida.

amnésia

considere o homem.
nascido do ventre de uma mulher, e alimentado por um par de seios. teve as nádegas lavadas da própria bosta pelas mãos da mãe mil vezes mais que pelas do pai. quando criança, é provável que tenha sido educado por "tias", mais do que por "tios".
considere o homem. imaginemo-lo um ser inteligente, racional, sujeito à empatia e ao discernimento do que é certo e do que é errado, o que quer que signifiquem essas palavras.
agora, considere que esse homem encontrou outros 29 e uma menina.

sábado, 28 de maio de 2016

descendência

"a ciência tem uma teoria chamada evolução, que diz que os humanos descendem dos macacos."

"vocês europeus e suas teorias malucas. nós aqui descendemos dos deuses."

"se é assim, não significa que nós, que descendemos dos macacos, estamos evoluindo e vocês, que descendem dos deuses, estão involuindo?"

"não, significa que vocês são macacos e nós somos deuses."